Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias. A História, por si mesma, é provocante e nos fascina, tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História, isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.

A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando gera algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada. É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu tempo em história e seu espaço em encontro. Aprendemos com a espiritualidade inaciana a ler a História de uma maneira diferente e instigante. Na experiência dos Exercícios Espirituais, Santo Inácio propõe, em cada tempo de oração, o preâmbulo “traer la historia” (EE 102), ou seja, recordar e contemplar relatos da História bíblica. A partir da memória bíblica, o exercitante é convidado a reler a própria história com novos olhos, reconstruindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-se impelir a escrever uma nova história.

Marcados pela mística inaciana, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história. Encontrar-nos com a história significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história. Significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela. Com isso, reiniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la. Uma história com rosto de futuro, e um futuro em horizonte de “magis”.

A história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo dos Exercícios. Não é fora da História e de sua história que o exercitante pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo, porque Deus se fez História e só o Verbo Encarnado pode ser “o verdadeiro fundamento da história” (EE 2). A partir de Jesus, a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido e se abre a um vasto horizonte de compromisso e possibilidades. A história pessoal do exercitante e a história do mundo tornam-se, portanto, o lugar habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome.

Fazer memória das histórias não significa querer mudá-las, mas adquirir nova perspectiva, um novo olhar. Com frequência, esta perspectiva nos ajuda a entender melhor nossa situação atual. Trata-se da memória agradecida: tudo tem sentido, nada é desperdiçado.  Quando a história é contada e recontada, acontece a cura da memória. Em vez de uma história opressiva e pesada passamos a contar com uma história redentora. O momento da graça é precisamente esse: quando, de repente, a perspectiva muda, encontra-se um novo sentido e surge uma saída do emaranhado de lembranças, emoções e histórias de fracassos e decepções.

Vemos isso claramente no relato dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35). Na narrativa o forasteiro ajuda os dois discípulos a desatar o nó de suas lembranças traumáticas e a compor uma nova história. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se pesada e eles procuram fugir de Jerusalém e da terrível lembrança da morte do Mestre. Mas a história os acompanha na estrada. Não param de repeti-la. Mesmo quando dizem as palavras certas, a intensidade emocional da experiência não lhes permite ouvir a história de uma perspectiva diferente. O forasteiro, ao juntar-se a eles no caminho, ajuda-os a recontar a história, gentil e gradualmente. Ele reorienta a história sem diminuir a gravidade do que aconteceu.

A história é recontada e considerada no contexto de uma História muito mais ampla (a História da Salvação). A descoberta desta nova perspectiva acontece como momento de graça que desce sobre eles. A história recontada começa a reconstruir a humanidade deles, a esperança vai retornando, os corações vão se aquecendo, a alegria vai surgindo em seus rostos. O forasteiro, ao criar um círculo de amor, abriu espaço para que os discípulos contassem sua história em segurança e começassem a reconstruir a confiança. Foi criado um ambiente seguro de hospitalidade que culmina na Ceia. É nesse ambiente que a taça do sofrimento transforma-se na taça da esperança. Das cinzas brotam perspectiva, o entusiasmo e os sonhos. E eles apressam-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a descoberta de um novo sentido da história.

A História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser reescrita de uma maneira diferente. Nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança, ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção, ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora, ela nos traz para casa, para nossa própria integridade e identidade. Assim, “traer la historia” é chegar a conhecer, sentir e amar a nossa própria história.

Texto Bíblico  Lc 24,13-35

 

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